Soberanas


Carol Canabarro

Ela despertou arfando, como era de se esperar de alguém que teve a garganta cortada milhares de anos atrás. Ergueu meio corpo da cama e, com as mãos no pescoço, soltou:
— Por Atenas! Onde estou?
— No Brasil, pela nossa contagem, são 2023 anos depois de um cara chamado Jesus Cristo ter nascido — respondeu Bruna, líder das mulheres que acompanhavam a cena.
— Bra...sil? Pra que lado do Mediterrâneo fica? E esse Jesus, quem é? Tomou o lugar de Zeus?
Antes que pudessem responder suas perguntas, ela cobriu os olhos com os cotovelos e gritou:
— Oh, não olhem para mim! Não quero lhes fazer mal.
— Relaxa, Medusa. — A líder se aproximou, abaixou os braços dela e olhou diretamente nos seus olhos. — Você está segura agora. Tragam um espelho para ela, por favor.
A garota não pôde acreditar no reflexo. Seus cabelos longos, cacheados e negros emolduravam o seu rosto. As feições suaves, os lábios escarlates e os dentes alinhados estavam ainda mais belos do que era capaz de se lembrar. Largou o espelho de lado e percebeu seu corpo de fêmea humana, com suas curvas originais. As pálpebras se espremeram ao notar que, no lugar da antiga, cauda estavam pés. A Górgona voltara a ser jovem, bela e mortal.
As espectadoras sorriram complacentes. Bruna começou a explicar que o mundo não tinha mudado muito desde os tempos mitológicos. As mulheres continuavam desvalorizadas, sofrendo abusos, sendo castigadas por existirem e que, apesar de um avanço ou outro, em essência, continuavam chorando o triplo do que sorriam. Um problema histórico, fruto de uma cultura feita para manipular e distorcer o valor da mulher.
— Nós te buscamos para tentar reparar a História. Ao revelar a verdade, contando a sua versão do mito, esperamos consertar o passado para termos alguma chance no futuro. Nós somos — um berro agudo interrompeu a conversa. Medusa, com as costas coladas à cabeceira, se encolheu na cama. Uma das mulheres levantou para fechar a porta enquanto outra acalmava a recém-chegada:
— Esse grito veio da sala ao lado, nossas companheiras estão com Atenas, botaram o filme sobre a ativista Olívia Muraro para ela assistir. Ela está bem relutante em reparar a própria história. Esse negócio de achar que nasceu direto do crânio de Zeus bagunçou a cabeça da pobre. Mas somos persistentes e não deixaremos nenhuma para trás. Ela é inteligente, logo há de compreender seu verdadeiro papel na História.
A criatura ouvia as palavras, mas pouco compreendia o que diziam. Voltou sua atenção para a líder, à espera de mais informações.
— Como ia dizendo, uma vez por ano nos encontramos para reescrever a História pela perspectiva das mulheres, dar-lhes voz e a oportunidade de se defenderem dos abusos e das injustiças sofridas. Neste ano, você é uma de nossas escolhidas.
Medusa relembrou sua vida. Fora sacerdotisa da deusa Atenas e, por convicção e fé, manteve sua castidade, até ser tomada à força por Poseidon. Depois da violência, sentiu-se suja e envergonhada. A única ajuda que soube procurar foi a de sua protetora. Prostrou-se diante do altar implorando por justiça e perdão. Que culpa tinha por ser bela? Que culpa tinha por ser mulher sem possibilidade de defesa ante a lascívia de um homem, de um deus?
A jovem recorreu à sabedoria de Atenas, mas não contava com a destemperança da deusa. Foi punida não só com cabelos de serpente, dentes de javali, rosto demoníaco e cauda no lugar de pernas, mas com o exílio na solidão. Nunca mais poderia olhar alguém sem o petrificar. Morreu decapitada e ainda teve sua cabeça transformada em arma pela deusa que tanto admirava. A criatura vertia suas dores estancadas por todos os anos de iniquidade sofrida.
— Além de devolvermos suas feições, temos mais dois presentes para você. — Medusa sorvia as palavras como quem mata a sede de uma náufraga em alto-mar.
A mulher à esquerda da anfitriã trouxe um livro e entregou para ela. Nele, sua lealdade para com Atenas estava evidente, sua inocência diante dos atos hediondos de Poseidon e a absurda injustiça sofrida ao ser convertida na temível criatura. O último capítulo descrevia o encontro e as dádivas ofertadas.
— A partir de agora, você poderá se transformar em Górgona no momento que estiver em perigo. Homem, semideus ou deus algum poderá machucá-la. Você tem todas as ferramentas para se defender. Infelizmente, não podemos lhe conceder imortalidade, mas lhe prometemos eternidade enquanto uma de nós existirmos.
A garota correu em direção a Bruna para abraçá-la. Permaneceram assim por um longo tempo, até que Medusa perguntou:
— Vocês são deusas de uma nova geração? Como podem ser tão poderosas a ponto de enfrentar Atenas, Poseidon e todos os outros deuses? Como conseguem reescrever a História?
O grupo gargalhou.
— Deusas? Longe disso, minha pequena. Somos humanas, bem humanas. Nosso único poder vem de uma caneta. Somos escritoras. 

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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