Carol Canabarro
A sala estava cheia, bem como os copos dos convidados quando a campainha tocou e Luciana, a aniversariante e dona da casa, abriu a porta. Era Henrique, vizinho de andar, trazendo de presente um vinho que, fez questão de dizer, ser francês e “comprado in loco”.
Trocaram cortesias no hall, ela fez um sinal para que ele entrasse e ficasse à vontade. Ele correu os olhos pela sala à procura de um rosto amigo. No canto esquerdo, falando com o garçom, reconheceu Priscila.
Levantou o braço até a altura do peito e acenou pela metade, ao que a mulher do outro lado da sala respondeu pendendo a cabeça para frente.
— Vocês já se conhecem? — perguntou a dona da casa.
Ele não disse: "nos conhecemos, inclusive, no sentido bíblico. Foi o amor da minha vida." Disse:
— Já. — E foi sentar-se ao lado dela.
Priscila cruzou as pernas, apontando o joelho para Henrique, enquanto ele ajeitava a cadeira para ficar mais próximo. Falaram coisas como “nossa, você por aqui?”, “inesperado”, “há quanto tempo?”. Fingiram fazer contas, perguntaram de alguns familiares e foram interrompidos pelo garçom que retornara com a taça de espumante solicitada por ela.
— O senhor deseja algo para beber?
— Pelo visto vocês têm Moscatel, quero uma taça também.
— Temos claro, mas Dona Priscila está tomando Brut. Qual o senhor prefere? — Ela virou a cabeça na direção oposta a ele, escondendo os dentes que insistiam em aparecer.
— Moscatel, por favor.
O garçom dirigiu-se ao bar, eles permaneceram sem conversar, produzindo pequenos ruídos, como um computador ao processar informações. Henrique não pode deixar de perceber, com a esquina do olho, que ela estava com unhas longas e azuis, o cabelo mais curto, a roupa parecendo ter sido tirada de alguma revista de moda, tudo acompanhado por um All-Star multicolorido. A tatuagem de leoas no antebraço direito era nova. Ela está muito diferente.
Priscila erguia o rosto com frequência na direção das crianças que brincavam na varanda. Ele rasgou o silêncio:
— Me conta, o que você tem feito? — Não esperou resposta. — Sabe, depois que você partiu daquele jeito, eu passei uma longa temporada na Europa. Fiz MBA em Paris, visitei várias vezes o Louvre, esquiei em Chamonix-Mont-Blanc, voltei, consegui trabalho no escritório do Dr. Sampaio, lembra dele? Amigo de infância do papai.
Ela piscou demoradamente para concordar e bebeu outro gole. Henrique continuou falando da temporada na França, das caixas e caixas de vinhos trazidos de lá e do altruísmo em dar um deles para Luciana. Seguiu relatando os casos que vencera para o escritório, lembrou de uma ida ao Rock in Rio-Lisboa no verão e como o evento era “muito mais civilizado na terrinha do que o original no Rio de Janeiro”.
Continuou despejando palavras quando o garçom trouxe sua Moscatel. Priscila conseguiu uma brecha para pedir outra taça.
— Falei demais de mim, quero saber de você — disse colocando a mão no joelho pontiagudo dela.
— A vida tem sido generosa, eu...
— Mamãe! Quero água. — Fez a menina secando o suor do rosto com a barra do vestido.
— Olhe quem está ao lado da geladeira, querida. Aproveite.
A menina correu em direção a uma mulher alta, com longas e grossas tranças enroscadas as costas, agarrou suas pernas e elas se abraçaram antes da garota receber o copo d’água.
— Ela não é sua, né? Digo, não nasceu de você. Vocês são diferentes. Sorte a sua ter uma babá da cor dela para menina não ficar deslocada. Sua empregada é bem carinhosa, coisa rara nesses dias.
Priscila levantou-se como se mil unhas de gato tivessem brotado da cadeira, caminhou até a mulher, que ainda tinha a menina agarrada nas pernas, e beijou sua esposa como nunca havia beijado Henrique.