Carol Canabarro
O último comprimido ainda está na minha garganta quando Nina chega à cozinha, segurando sua Barbie salva-vidas. Afora a airfryer, uma decoração mais moderna e o fato de eu não ser tão rechonchuda como minha avó, a cena parece um trecho do Vale a Pena Ver de Novo.
Como numa foto Polaroid, o tom pastel da minha memória embaçou os detalhes, mas o principal permaneceu: eu entrando na cozinha, os olhos vermelhos, implorando ajuda para minha vó. Os cabelos da boneca não crescem, falei cortando palavras.
Ela largou o pano de prato úmido em cima da pia, agachou-se até minha altura. Com uma mão, fez carinho no cabelo espetado da boneca, com a outra, feito pluma levantou meu queixo de terremoto. Ela não é como a gente, cabelo de brinquedo não cresce, o nosso, sim. Me abraçou, sussurrou em meu ouvido, você pode ser e fazer tudo o que quiser, boneca não. As palavras tinham gosto de banana caramelada.
Dias depois, minha mãe teve um ataque de choro-riso quando me encontrou no quarto com uma tesoura escolar entre os dedos e uma mecha loira faltando bem acima dos olhos. O resultado final foi ter o corte de cabelo idêntico ao do meu irmão e virar motivo de chacota na família. O que também me fazia rir. Afinal, cabelo cresce.
Minha cabeça experimentou franja, “Chanel”, depois curto, bem curto, mais curto ainda e uma tentativa fracassada de cacheado (passei duas vezes um produto com cheiro de peido de javali). Tudo antes dos dezoito. Acompanhei moda, lancei a minha própria. Brincar com meus cabelos era poder me reinventar e ter a certeza de que poderia, a qualquer momento, voltar a ser o que era meses atrás ou ser algo completamente inesperado.
Beto, por exemplo, me conheceu com o cabelo preto quase na cintura. Casamos com um corte repicado e luzes californianas. A rotina do matrimônio, seguida dos filhos, foram uma longa pausa para as madeixas. Longa demais. Tão comprida que, um dos momentos mais icônicos, foi o dia da assinatura do divórcio. Surgi com a cabeça vermelho-fogo. O nariz do Beto parecia querer ficar entre as sobrancelhas, de tanto que ele apertou a cara. Sorri por dentro – e, talvez, por fora. Ele alegava que aquela cor era vulgar. Ainda bem que eu estava pronta para voltar a arder por aí.
Minhas filhas diziam que anos de química no cabelo tinham amolecido meus miolos. Queriam que eu sossegasse. Eu nada. Tem tanta coisa para gente aproveitar e, afinal de contas, cabelo sempre cresce. Continuei. Teve até uma vez que fui, com cabelo de arco-íris, na Parada LGBT+ com minha neta mais velha. Nos fotografaram tanto que viramos parte da divulgação do evento no ano seguinte.
Durante a pandemia, parei de pintar. Foi uma temporada de introspecção. O cabelo de neve serviu para refletir o inverno que se abateu sobre o mundo. E mais ainda sobre o que recairia sobre meus ombros nos próximos meses. Os fios brancos tinham sido minha última versão.
Nina continua na cozinha, segurando sua Barbie salva-vidas. Termino de engolir o remédio e a puxo para o meu colo. Pergunto se ela sabe que cabelo de boneca não é igual ao de gente. Ela projeta o tronco para trás, espalma as mãos e com palavras de banana caramelada sussurra: sei sim vovó, deixei ela carequinha assim, para ficar linda igual você.