Carol Canabarro
O som mói meus ouvidos e a minha cabeça parece estar numa centrífuga. Demoro a entender que o barulho é o despertador. Movo o menor número possível de músculos para sair da cama, o mundo é um grande pula-pula e eu, uma vareta tentando ficar de pé. Rastejando pelos móveis, entro no chuveiro. Tenho menos de uma hora pra maldita entrevista e só consigo pensar no que começo a deixar de ser.
Todo mundo diz que canto pra caralho, que lembro Clara Nunes. Mas me pagam como se minha voz fosse de gata no cio. As contas de casa são tantas que, no final do ano, as transformei em árvore de natal. O violão amarrotado no canto da sala não me dirige palavra. Me entrego. Se a cabeça tá fraca, o fígado permanece forte.
Ontem, antes de começar a beber, alarmei o celular e deixei a roupa do dia seguinte separada. Se dependesse da minha lucidez depois da festa, perderia a hora e a oportunidade. Minha mãe diz que eu bebo demais, que, qualquer dia, acabo na sarjeta. Mal sabe ela: já usei bueiro de almofada duas ou oito vezes.
Comigo é assim: tudo demais. Durmo demais, fico acordada demais, bebo demais, transo demais, trabalho demais, brigo demais, anseio demais. O problema não é a bebida, o problema é o demais.
Por causa disso, tô de novo sem nada, só com metade da roupa do corpo. Já quebrei a cara mais do que lutador de boxe que não fecha a guarda. Dessa vez, vou me conformar. Arrumar um emprego, terminar a faculdade, casar e ter filhos, como as boas moças fazem. Nada de fantasiar uma vida de autógrafos e holofotes.
Chego à loja cinco minutos antes da entrevista. Dá tempo de tomar uma Coca e mascar um Halls pra disfarçar o gosto de pano de chão e o desgosto de estar neste lugar. A conversa com Dona Tereza é rápida, aceito a proposta sem nem saber o salário. Começo a vender portas segunda-feira, às oito horas da manhã.
Agora, vou beber pra comemorar o emprego e esquecer que, mais uma vez, trancafio minhas ambições. Tomara que, no meio de tantas portas, eu encontre uma de saída.