Obra-prima


Carol Canabarro

Com o pincel entre os dedos, dá dois passos para trás, e semicerra o olho direito — as cores são mais brilhantes vistas com o olho menos míope. O verde, ainda molhado, espera na paleta. Mais azul? Algum retoque nos lábios? E se sombrear mais aqui? Finge escolher a tinta e ensaia posicionar o pincel nos pontos indicados.

É o último quadro da coleção. O primeiro, na verdade. Como trabalha em várias telas ao mesmo tempo, esse foi o primeiro a ser começado e o único que falta terminar.

Artista contemporânea, Alice vive de sua arte. Uma gema quase solitária no emaranhado de pintores brasileiros. Suas telas migram para estampas de vestido, capas de cadernos, enfeitam canecas e almofadas. Constatara o sucesso quando uma de suas obras se transmutou em canga de praia. “Corpos salgados, seminus e dourados deitam sobre minhas telas. O que mais uma pintora pode desejar?” Numa entrevista, descreve com orgulho:

— Não sou dona das minhas telas, elas quem tem a mim. Pincelo quando me chamam, quando me necessitam para nascer, viver e, em algum ponto, encerrar-se.

Diante desse quadro, parece inexperiente. Acabou? É isso mesmo? Na dúvida, abandona a tela e pinta outra e depois mais uma. Quer ferir o quadro, ofendê-lo. Mostrar que ele é o problema, como jovens que terminam o relacionamento e saem flertando para causar ciúmes. Ama-o, quer mais dele, mas não pode admitir isso.

Dá mais dois passos para trás. Deixa os braços cair ao longo do corpo. De hesitação, a tinta seca. Alice fecha por completo o olho direito e semicerra o esquerdo. Nada. O quadro não responde. Desta vez ela não cederá. Só sairá da frente da tela depois de pronta. Paula, sua assessora, faz questão de lembrá-la, através de mensagens diárias, que a exposição começará em breve, e a divulgação das peças precisa ser feita. A coisa tem que ficar pronta.

Um passo à frente. Faz menção de erguer o pincel. Um estrondo no quarto ao lado a arranca do transe. É Jorginho correndo atrás de uma borboleta que serpentea o corredor alheia aos perigosos dentes caninos.

— Jorginho! — Ele para na frente de Alice, vira o rosto meio de lado, abanando o rabo.

A borboleta cruza a porta, entra no estúdio rente a Alice. Impressão minha ou a borboleta riu pra mim? Jorginho passa por entre suas pernas. Ela precisa se apoiar no marco da porta. Num rodopio digno do Bolshoi, a borboleta pousa na parte baixa da tela. O abrir e fechar das asas hipnotiza e convida Jorginho a agir. Alice lê os pensamentos do cão. Corre em direção a ele. Ele corre em direção à borboleta. Sim, ela riu.

Jorginho avança. Alice e a borboleta pulam. Caem. Paleta para um lado, pincel para o outro, Alice por cima do cachorro, a tela por baixo do caos. O inseto escapa pela janela. Desolada, levanta apoiando-se nas pernas. O animal sacode o pelo, espalha cores pela sala e sai atrás de outra travessura. Alice olha a tela. A obra está acabada: o perfil do cachorro e o dela manchados, nítidos na pintura. Bate a porta do ateliêr e não volta mais.

Na semana seguinte, Paula e um auxiliar, buscam as telas para levar à vernissagem. A funcionária olha o quadro por alguns minutos sem piscar e, com as mãos segurando o queixo, ordena:

— Pedro, embala este aqui primeiro.

Levam tudo. Alice nem dá as caras.

Na fatídica noite, a artista sai de casa com trinta minutos de atraso. Disfarça a bebedeira da noite anterior com lisonjas e falsa dor de cabeça. Picasso também sofria de enxaqueca, as pessoas comparam. Ela aproveita. Abusa das crises para fugir de recepções com socialites que nunca entendem a essência de suas telas, mas podem pagar por elas. Uma crise cai perfeitamente bem, veste-a. O pouco tempo que permanece no evento parece interminável e tedioso, feito valsa com irmão. Vai embora antes de iniciar as vendas, não quer presenciar sua queda.

No dia seguinte, Paula entra no quarto de Alice agora, de fato, com enxaqueca. Toca de leve seu pé descoberto.

— Você precisa ler isso. — Deixa o jornal na beira da cama e sai.

A desgraça me encontrou. Não há enxaqueca que me livre de uma folha impressa. Senta-se como pode. A cabeça pesa feito cobertor molhado. Não se digna a levantar e abrir as janelas, a pouca luz é o suficiente para ler sua derrocada. O trágico quadro estampa a capa, a manchete é implausível. Relê: “Com obra digna do Louvre, Alice Monteiro se torna a primeira pintora brasileira a comercializar um quadro com mais de seis dígitos.”

Minutos depois, Paula retorna ao quarto, traz o café e um enxame de recados. Há um sem fim de entrevistas para conceder. Opta por uma coletiva, tem que ser naquela mesma manhã. Alice toma banho e, antes das dez horas, recebe os repórteres no jardim de casa. Com óculos escuros e sem qualquer formalidade descarrega:

— Estou me aposentando.

Frenesi generalizado, braços erguidos, as mesmas perguntas ecoam em tempos diferentes. Os repórteres parecem tios bêbados cantando "Parabéns pra você" em festa de criança. Desta vez, solenemente, Alice empurra a cadeira, ajeita os óculos e retira-se calada. Paula toma seu lugar e pede compreensão, afinal, não se pode processar tais acontecimentos presa na maldição da enxaqueca. Os jornalistas dispersam.

Nas manchetes do dia seguinte, os críticos atribuem sua aposentadoria à “sutileza mágica que envolve um artista ao saber que, uma vez feita tal obra, nada mais precisa ser criado”. Nos três verões seguintes, a canga é sucesso absoluto de vendas.

O que ninguém nunca soube é que, naquele dia, antes do almoço, Alice desfez-se de Jorginho.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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