Carol Canabarro
Se meus pensamentos se transformassem em grãos de areia, essa hora, eu estaria soterrada. Passado, presente e futuro se mesclam, feito músicos de uma orquestra tocando, cada um, partituras diferentes. Inviável organizá-los. Impraticável deixar percebê-los.
Lidar com a ausência física e a presença mental de minha mãe é, por vezes, dolorosamente agradável. Minhas mãos nunca mais tocarão os delicados fios prateados que adornavam sua cabeça. Seu perfume preferido não mais deixará marcas no corredor. À noite, por mais ligações que eu faça, aquela que parava o que estivesse fazendo para me atender, faltará. Sinto-me árida.
Tem um leite condensado pela metade na geladeira, sem destino. Foi aberto para ela. Não há como acabá-lo. Jogar fora? O que mais de minha mãe deixarei o vento levar?
Eu que já não tenho sua existência, me agarro a tudo que pareça mantê-la um pouco mais. Quero forçar as areias da ampulheta a deslizarem devagar. Elas despencam.
O presente bate palmas em minha porta. Preciso levantar, atendê-lo, convidar para um chimarrão. Um chimarrão... minha mãe, das mais gaúchas, apreciava mais a roda do que o próprio mate. Outra duna se forma.
Crio uma rotina com minhas tarefas diárias. Se me ocupo, menos tempo tenho para divagar. Mas o universo também está submerso em deserto. O produto do meu trabalho é o sumo do que se passa em minha mente. E estou areia movediça.
Resisto. Persisto. Sigo o cronograma.
Organizar o mundo externo é um dos caminhos para estancar minha tempestade de areia interna. Se não podemos estar plenos, que pareçamos. Finjo confiança, como um ensaio para as certezas do amanhã.
No almoço de domingo, ninguém percebe a maneira como memorizo minha sogra: a pantufa desgastada, sua voz trépida a caça de palavras, o cheiro de limão siciliano entre seus dedos. Não se parece em nada com minha mãe. Tudo a lembra. Volto para casa com dois caminhões de areia nos ombros.
O computador, impetuoso, me acusa: “Você não vem? Nosso encontro está no cronograma, pendurado na altura dos seus olhos”. Sento. Levanto. Faço mil coisas fora do previsto antes de enfrentá-lo. Ele vence.
É hora da “Escrita Livre”, uma brecha na lei que eu mesma criei. Posso falar sobre o que vier à cabeça, sem preocupação com estética literária, com português correto, ou se a personagem é esférica. Vai acreditando.
Lutei vidas para me conhecer em profundidade, para ser capaz de identificar qualquer sinal de incoerência entre meus pensamentos, emoções, falas e ações. É tarde demais para voltar atrás. Esconder-me dos outros é fácil, de mim mesma, impossível. Não há como varrer desertos.
Os pensamentos mais barulhentos se fazem ouvir. Escrevo sobre eles. Pinço palavras exatas para retratá-los. Por mais livre que a escrita seja, no final da página, eu sei (e você também sabe) que tudo será sobre ela.
E assim, de grão em grão, dissipo parte do meu Saara.