Carol Canabarro
Doar sangue salva vidas, ela sabia. Havia visto inúmeras campanhas sobre o tema. Mas saber é diferente de experienciar.
...
A madrugada tinha cedido espaço para o dia há duas horas. Sua mãe ainda não despertara e a luz vinda da janela era suficiente para leitura. Sofia ajustou o encosto da poltrona reclinável, sentou-se ereta, e mergulhou nas palavras. Virava as páginas como se fossem de cristal, o mínimo som tiraria Ieda do sono e ela não queria que a mãe voltasse à realidade logo cedo.
Os bipes dos aparelhos controlando os sinais vitais e gotejando os remédios, não desviavam nenhuma das duas do transe. Foi só com a chegada do médico que elas despertaram. As notícias não eram boas, mas também não eram ruins. Ieda permanecia estável, o que era motivo de celebração. Uma piora no seu quadro indicaria nova série de exames e de alterações nos medicamentos. Entretanto, a equipe médica contava com uma melhora em 24 horas, coisa que não aconteceu.
- A anemia não está cedendo, sugerimos uma transfusão para normalizar a imunidade. A senhora já fez esse procedimento, Dona Ieda?
Seus olhos, semiabertos, correram para os da filha. Talvez ela não se lembrasse da resposta, talvez não conseguisse falar. Sofia compreendeu.
- Ela nunca fez, doutor.
O médico passou a explicar os baixos riscos e altos benefícios da transfusão, relatou a importância de realizá-la o mais breve possível e perguntou se a família autorizava a intervenção.
Sofia pousou os dedos sobre os da mãe, apertou-os com gentileza e concordou, apesar do calafrio que percorreu suas veias ao imaginar o agravamento que uma reação adversa poderia causar. Doutor Murilo foi enfático:
- Os riscos são ínfimos e uma enfermeira estará de prontidão para qualquer eventualidade, fiquem tranquilas, vou preencher a documentação necessária para iniciarmos o processo o quanto antes.
Elas nem o viram sair. A mão que antes tocava a da mãe, agora ajeitava as cobertas. Vai dar tudo certo, disse Sofia.
Lúcia, a enfermeira do hemocentro, chegou algumas horas depois. Vinha com a papelada da autorização e todos os equipamentos necessários. Repassou o procedimento, a importância dos primeiros minutos, quando o receptor pode apresentar rejeição e como a transfusão deve ser feita em, até, quatro horas. Depois disso, a bolsa se torna inutilizável, ponderou a profissional. Sofia absorvia tudo com olhos, boca e ouvidos abertos.
- Filha, tô com medo.
Com os lábios quase tocando a orelha da mãe e com uma de suas mãos sob o peito de respiração descompassada da paciente, a garota a acalmou com um: estou aqui, vou ficar todo tempo ao seu lado, mãezinha.
De maneira precisa, a enfermeira não desperdiçava nenhum movimento. Parecia uma ginasta nas paralelas, indo de um ponto ao outro com fluidez e rigor. Sofia, que acompanhava cada pausa, não precisou perguntar nada, Lúcia fazia questão de explicar cada uma de suas ações.
Quando ela abriu a caixa térmica e tirou a bolsa de sangue, os pensamentos de Sofia davam piruetas. Ali, dentro daquele invólucro plástico, estavam contidos anos de pesquisas científicas, de desenvolvimento tecnológico e, da concretude de algo que ela, até então, acreditava ser imaterial. Naquela bolsa, pesando menos de meio quilo e de proporções menores do que o livro pousado na poltrona, havia não só sangue, mas os sentimentos mais nobres do ser humano.
Alguém, algum dia, saiu de sua casa (ou do trabalho?), caminhou (ou foi de ônibus?) até o Hemocentro, fez um cadastro, respondeu algumas perguntas, deitou em uma maca, estendeu seu braço, deixou-se ser perfurado e doou quase meio litro de sua vida. De graça. Pela simples vontade de ajudar uma pessoa que ela jamais saberia quem é.
Duas pessoas que desconheciam suas cores, gêneros, crenças, históricos de vida ou aspirações estariam, em poucas horas, unidas para sempre. A filha não secou a lágrima que delineou seu rosto.
Ieda dormiu logo depois da transfusão começar. Sofia admirava cada pingo de gota e criava para si as mais incríveis fantasias de quem, outrora, tinha aquele líquido debaixo da pele. Seria de um pai que doara para o filho enfermo? De uma jovem participando de uma campanha na universidade? De alguém solitário? Ou com muitos amigos? Quem dirá, de uma pessoa conhecida? Ela não sabia e não saber tornava o ato ainda mais fascinante.
Quando o médico chegou ao quarto, na manhã seguinte, mãe e filha conversavam entre sorrisos. Ieda estava falante, bem disposta, até corada. Elas faziam piada de que, ainda bem, foi Sofia quem acompanhou a transfusão.
- Se fosse teu irmão, tinha desmaiado. Aquele ali não pode ver agulha. – O médico achou graça.
- Além do seu, perceptível, ânimo, seus exames apresentaram melhoras, Dona Ieda. A transfusão foi um sucesso.
Naquela mesma tarde, depois de deixar a mãe aos cuidados do irmão, Sofia foi até o Hemocentro do hospital. Ela queria conhecer a sensação de estar nas duas extremidades daquelas histórias sem nome.