Carol Canabarro
A convite de uma amiga-atriz, fui fazer a visita guiada ao Theatro São Pedro. A ideia era prestigiar a esquete que ela faz durante a visitação e levar minha sogra, minha cunhada e concunhado paulista para um passeio cultural. Recebi mais do que quis proporcionar.
Eu poderia falar da arquitetura neoclássica arrebatadora, do foyer majestoso na entrada, das escadarias imponentes ou do piso acarpetado em escarlate que, assim que o pisamos, nos transportam para séculos passados. Mas isso é história e todos que lá forem, podem contemplá-la. Quero aqui, contar sobre como foi a minha visita guiada.
Com 165 anos, o Theatro São Pedro passou por abandonos, tombamentos, guerras e cupins. Teve a vista da praia sufocada por altos prédios e viu seu irmão gêmeo ser desmanchado para dar lugar ao Palácio da Justiça – o que considerei uma injustiça.
Lembrei das minhas próprias batalhas, dos horizontes perdidos e das vezes que me desfiz do que me corroía para poder seguir em frente. Eu também enxotei cupins.
Logo na entrada, conheci a história da Dona Eva Sopher, uma mulher apaixonada pelo Theatro São Pedro que dedicou sua vida para mantê-lo de pé. Nesse mundo, por vezes torto, pasmem, precisou ser defendida pela comunidade artística para permanecer no cargo de curadora. O totem da senhora franzina que era, no hall, reverencia sua grandeza.
Não pude deixar de pensar nas pessoas que também dedicaram boa parte de suas vidas para cuidar de mim. De familiares a amigas, minha lista parece a multiplicação de “Donas Evas”. Nesse quesito, tenho mais sorte do que o São Pedro.
Ainda no saguão, surge a atriz Dulce Miranda, ou melhor, o fantasma de Dulce que habita o teatro há anos. Ela deixa claro que não nos convidou. Vaidosa, aceita nos apresentar sua casa. É ela quem conta histórias famosas e de bastidores do lugar. Seus olhos, enquanto fala, brilham. Coisa que nem sabia que fantasma podia fazer. Pontual e necessária, nos ensina porque desejar “merda” a um artista antes do espetáculo. Momentos depois, fica revoltada ao recordar que, quando as mulheres passaram a usar saias curtas, cobriram de gesso as grades dos camarotes para “manter o pudor”.
Sem perceber, me afeiçoo à assombração do teatro. Ela lembra meus próprios demônios. Aqueles que fervem meus ossos e cospem chicotadas de fogo se me veem sendo menos do que posso ser ou sofrendo abusos. Como Dulce, eles também são vaidosos e fazem de tudo para me proteger.
A quatro metros de altura, pesando mais de 600 quilos, com 30 mil cristais e 96 lâmpadas, o lustre central sequestra nossos olhos. Meu segundo pensamento (o primeiro é puro fascínio) questiona: como faz para limpar esse gigante? A guia parece ler mentes e explica a manobra complexa para abaixar e realizar a manutenção da joia.
Rio por dentro, tenho fotos no Instagram que são bem assim. Verdadeiras preciosidades. Mas que, no dia a dia, dão um trabalhão para manter. Feito o São Pedro, não escondo meus esforços – até tenho orgulho de contar as dificuldades para me manter reluzente, custou caro ser quem eu sou. É de admirar-se mesmo.
Sentados nas galerias, com Dulce no palco, a gente lembra que esse é um local de encenação, de arte. Onde tocam seus pés também pisaram de Bibi Ferreira a Jô Soares, passando por Nico Nicolaiewsky a Zé da Folha (esses eu recordo de assistir). Todos necessários para dar sentido à história do teatro.
E não são assim as pessoas que passam em nossas vidas? Algumas ganham placas de ouro nas paredes, outras ficam quase esquecidas nos amontoados de registros. Atores e atrizes da nossa principal e única peça.
Depois, somos convidados a conhecer o espaço anexo ao Theatro São Pedro batizado, sabiamente, de Multipalco Eva Sopher. Dulce não nos acompanha, ela não é chegada a modernidades. Os 18 mil metros quadrados de área construída, literalmente, brotam do chão. Um projeto luxuoso que tem a grandiosidade de deixar brilhar o irmão mais velho. É um lembrete de que o novo só existe porque o antigo manteve-se constante e que eles podem coexistir em harmonia. O que foi e o que será estão separados, apenas, por um passo.
Fim do passeio, nos sentamos no Du’Attos para saborear as emoções da visitação com café. De um lado o Theatro São Pedro, me lembrando que o passado, mais do que uma lembrança, é quem me trouxe até aqui repleta de histórias e do outro o Multipalco, assim como eu, com seus grandiosos projetos para o futuro.
Antes de ir embora, encontro minha amiga, ainda vestida de Dulce. Ela agradece a nossa presença e eu agradeço o convite do passeio pelo teatro e por dentro de mim. Nosso abraço sela a importância de ter a amizade como guia.
Na saída, em frente ao teatro, tiro uma foto com a família que escolhi. A vida é feita de agoras, mas como bem ensina o Theatro São Pedro: é preciso preservar nossa memória para celebrarmos o passado e sermos, ainda mais, extraordinários no amanhã.