Carol Canabarro
O mês de setembro é especial para os gaúchos. Para minha mãe, era maior do que qualquer época do ano. Ela amava celebrar a Revolução Farroupilha. Mais do que a demonstração de bravura do passado, era a liberdade e a união de uma comunidade em prol do que acreditavam, que faziam seus olhos brilhar.
Ela tinha orgulho de se chamar Canabarro, feito o general. Questionadora, como me ensinou a ser, falei para ela que esse era o único defeito em nosso sobrenome: estar associado a alguém que, num momento crítico, traiu os Lanceiros Negros. Minha veia, mulher de pouco estudo e muita sabedoria, respondeu: “história para trás não se muda, só do agora para frente”. Fiquei honrada por carregar o sobrenome dela.
Onde houvesse uma cavalgada, uma costelada, um baile, um motivo para se reunir com a gauderiada, a gente podia ter certeza: a coroa estaria lá. Distribuindo sorrisos, abraços, danças, histórias e amor. Chimarrão? Tomava, no máximo, três cuias. Cerveja? Melhor não contar. Ela gostava do agito, da farra. De ser feliz ao lado dos amigos.
Montada no Azzaro, seu cavalo adorado e motivo de piadas internas na família, desbravou o Rio Grande do Sul de uma ponta a outra. Tenho para mim que ela gostava, não só da liberdade de andar a cavalo, mas da lembrança que isso trazia. “Sempre que teu avô ia ao armazém ou no boteco, ele me levava na garupa”. Devia ser seu jeito de matar uma saudade que não morre.
No começo do ano, a doença a abraçou. A cada internação a gente dizia que ela tinha que ficar boa para poder ir ao Harmonia, “Setembro tá logo ali”. Ela sorria forçado. Fez seu melhor para viver o aniversário do Leco em janeiro, o meu em abril e o do Miguel em junho. A Semana Farroupilha ficou longe demais. Antes de partir, deixou tudo organizado. “Quero ser cremada e minhas cinzas, vocês espalham no Harmonia em setembro, pra eu comemorar para sempre”, orientou.
Assim, no último sábado, atendemos seu pedido. Com o sol alto, distribuímos suas cinzas entre os amigos e familiares. E cada um depositou um pouquinho dela nos lugares que tanto amava. As lembranças e histórias foram mais uma vez contadas, a comida compartilhada e a cerveja bebida. Com o coração na ponta dos dedos, deixamos a Inez Canabarro no seu lugar preferido.
Eu, que nunca fui muito de ir no Harmonia na Semana Farroupilha, nunca mais deixarei de voltar para encontrá-la.
Minha mãe está, fisicamente, onde sempre esteve sua alma. Na terra, na sua Terra.
E, para quem pisar nesse chão, caminha mansinho, com cuidado e respeito. Se for do teu feitio, toma uma ou duas em sua homenagem, dança com alguém que te faça bem ou sozinho e ri o mais alto que puder.
Uma mulher incrível vive, para sempre, nele.