Setembro Amarelo: através dos meus olhos


Carol Canabarro

A primeira vez que desejei morrer, estava em uma mesa de cirurgia, prestes a arrancar minha melhor parte. Algo com o qual, eu sabia, não poderia viver sem. Anestesiada, sucumbi. Acordei esvaziada e, para minha decepção, viva.

Eu tinha traído o amor, a vida e não podia suportar a culpa. Saber que o mundo era um lugar belo maximizava meu pesar. Eu não merecia estar nele. Se meu desejo não tinha se realizado pelas mãos dos médicos, então teriam quer ser, as minhas, a fazê-lo.

Um dia após o outro, o arrependimento me torturava em câmera lenta. Diante do espelho, passei a não me reconhecer. O olhar fundo e perdido, o cabelo despenteado, o corpo transformado em pele e tormento. Os pensamentos presos em uma única sombria ideia. Já não conversava verdades, não ria por vontade própria, nem planejava o futuro. O passado me consumia, uma angústia que sempre me alcançava, não importava para onde eu corresse. Eu precisava extrapolá-lo, para sempre.

Por dois anos, calculei e planejei o como, o quando e o onde. A possibilidade do sofrimento, no momento definitivo, não me assustava. Eu tinha decidido que sofrera o bastante.

Uma noite, no banheiro, dei a primeira volta da corda em meu pescoço. Bastava um nó bem forte para que a dor me soltasse. Quis olhar-me uma última vez no espelho. O vermelho destacou a cor dos meus olhos. E tudo veio, em forma de pequenas fagulhas, de um só golpe.

A visita preocupada do meu pai e minha fuga para que ele não lesse a tristeza no meu rosto.

O pedido para ser madrinha de uma criança tão desejada.

O convite para voltar a jogar com as amigas de infância.

A chamada de vídeo, mesmo você não gostando de fazê-las, para que eu pudesse participar do dia das mães.

A dedicatória, escrita a caneta prateada, no livro do Pequeno Príncipe.

O chocolate vegano, que você fez questão de me presentear, quando soube da minha decisão de não comer mais nada de origem animal.

As traquinagens junto aos primos na casa alugada de Capão.

Os sucessivos desastres nos meus quinze anos que, em pouco tempo, se transformaram em histórias hilárias na família.

A mensagem de um amigo querido pelo meu aniversário, mesmo com meses de atraso.

O café da manhã com cuscuz, levado na cama, junto com um bilhetinho de melhoras.

O pôr do sol no Guaíba.

O Natal que não passamos juntas, porque eu estava no hospital cuidando de sua mãe.

Os abraços apertados e orgulhosos dos parentes no dia da minha formatura.

A lembrança açucarada das minhas avós.

O blusão tricotado por minha mãe, acompanhado de uma carta em que me definia como ”Fênix”.

Ascendi e os vi, por cima dos meus ombros, naquele banheiro. Cada pequena lembrança afrouxou o laço, até que meus braços não conseguiram mais segurá-lo. E desisti de desistir.

Porque, mesmo distante, eu tinha vocês. Não importava se não nos falávamos mais, se estávamos dois mil quilômetros longe ou se recebi uma palavra de conforto na noite anterior. Se eu, ainda, sentia culpa. Aquela que eu achava ter morrido, vivia em vocês.

Me reconheci doente, mas agora, sabia onde encontrar a cura. Voltar nunca foi um retrocesso, mas o único jeito de continuar viva.

Até hoje me entristeço por não ter fugido daquela cirurgia, mas nunca mais cogitei interromper minha história. Com o apoio de vocês, escolhi reescrevê-la.


Nesse Setembro Amarelo e em todos os dias de minha vida, me solidarizo com familiares, amigos e todos que não encontraram seu caminho de volta a tempo. Para os que buscam motivo para respirar, saibam que há esperança no existir. Para os que os cercam, procurem ser o mais gentis em suas palavras e gestos. O amor cura.

E a gente nunca sabe, qual de nossas ações, pode vir a ser o motivo de uma pessoa permanecer viva.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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