Troféu


Carol Canabarro

Desligo o telefone sem acreditar nas palavras da minha empresária. “Confirmei a reunião com a Taís Trentini. Amanhã, às dez horas. Não se atrase, Rafael. Não vou com você. Boa sorte.” Eu, no Flamengo, na sala da Presidenta, para organizar os detalhes do MEU show. Se eu estiver sonhando, não adianta tentar me acordar, porque volto a dormir.

Me segurei para não ligar para o Carlinhos e contar a novidade. Flamenguista doente, meu irmão é capaz de infartar quando souber que eles me querem como apresentador na festa do clube, no meio de diretores, jogadores e sócios selecionados. Desde que comecei a fazer comédia a sério, optei por só comemorar os contratos depois de assinados. Iludi minha mãe mais vezes do que ela merecia com promessas de boteco. Fiquei sagaz. Melhor esperar para contar a novidade, quando ela de fato for uma.

Por hora, sigo minha rotina. Tapa na barba, roupa descolada, caderninho debaixo do braço e dose extra de perfume, já que para bonito não sirvo, e parto para o Comedy Center. Essa noite não vou beber (muito) e nem arrumar função para depois do show. Marília me fudeu marcando a reunião tão cedo. Dez da manhã é praticamente madrugada. Como vocês podem ver, a vida de comediante requer muitos sacrifícios.

Faço tudo como o planejado e volto para casa. Tomo um banho para tirar o bar do corpo e relaxar. Passei a noite inteira pensando no Mengão. Até rascunhei umas piadas entre uma sessão e outra.

Quando me deito, meus olhos ficam mais abertos que porta de funerária e minha mente fala mais que fofoqueiras depois da missa. Desisto de dormir, me levanto, pego uma cerveja, cigarro e vou para varanda imaginar o dia seguinte.

Antes de o sol despontar, o alvoroço dos trabalhadores movimenta a cidade. Deve ser uma merda ter que acordar tão cedo. Boto a água do café para ferver e dois pães na torradeira. Vou fazer tudo cedinho. Não posso atrasar. Com a barriga cheia, tomo uma ducha, passo mais perfume do que o habitual — vocês sabem — e me visto. Repito o All Star vermelho e preto. Chamo o Uber e vou para o Maracanã.

Eles estão me aguardando. Entro pelo acesso dos atletas, coisa fina. Um funcionário me guia até a sala da Presida. Melhor não chamar ela assim durante a reunião. Ele avisa da minha chegada e Taís autoriza minha entrada.

— Olá, Rafael! É um prazer tê-lo conosco. Ansioso?

— Como você sabe? — digo com o sorriso picotado, mas imagino que ela tenha descoberto pelas olheiras.

Negociamos o uso de alguns palavrões, piadas com outros times — não tem show se eu não puder falar do Vasco — e o que se espera de mim nas apresentações dos homenageados da noite. Finjo que anoto algumas coisas (minha empresária me passa tudo por escrito depois) e passo a maior parte do tempo olhando as fotografias dos infinitos troféus na parede ao fundo. Taís percebe.

— De minha parte, terminamos aqui. Depois vou pedir para o meu assessor formalizar o que acordamos, redigir o contrato e mandar para Marília, ok?

— Ótimo. — Viu? Não precisava anotar.

— Quer dar um pulo na sala de troféus? Posso te acompanhar por alguns minutos.

— Lógico — falo já de pé.

Tour pela sala de prêmios com a Presida. Tô nas alturas. Um caneco mais bonito que o outro. Solto uma ou outra piadoca quando vejo medalhas de segundo lugar, ela ri baixinho. De repente, paramos diante de uma foto com meninos da base do clube. Taís fala da importância de fomentar o esporte nos pequenos e de como eles podem ser vantajosos para o clube no futuro. O brilho dos meus olhos desaparece.

— Sabe, eu já fui da base do Flamengo. Tinha 14 anos, jogava direitinho até. Zagueiro.

— Não sabia.

— Tive que largar para ajudar minha mãe com meu irmão mais novo. Ele é autista. Solicitei auxílio no clube e fui vaiado. Tá certo que eu era meio desengonçado, mas acho que tinha futuro — brinco.

— Futebol pra gente é paixão, mas também é negócio. Histórias como a sua e outras, ainda piores, encheriam mais salas do que essa. Fico sentida, mas é parte do processo.

A lembrança do que não fui me deixa desconcertado. Invento uma desculpa e vou embora. Comediante tem que fazer rir e aquela sala não estava ajudando. Em casa, mando mensagem para meu irmão, que responde eufórico na mesma hora.

Recebo o email com as instruções que não anotei, na tarde seguinte. Tenho bastante liberdade para criar, isso é bom. Só preciso descartar as piadas com os dirigentes mais velhos. Os cartolas e seus erros de contratação eram o auge do show. Aviso minha empresária que preciso de duas entradas para levar a mãe e o mano comigo.

No dia da apresentação, vou a um barbeiro para ficar apresentável. Marília me trouxe uma roupa especial (ligeiramente espalhafatosa). Ainda bem que combina com o tênis rubro-negro. Me apronto, pego Carlinhos e a coroa no caminho.

Um aglomerado de repórteres e torcedores faz fila para entrevistar os jogadores na porta do Maraca. Eu passo de gaiato, a galera me reconhece, tiro umas fotos falo umas graças antes de entrar, me despeço da família que segue para o salão e vou para o camarim. Meu nome está na porta. Tô que não caibo dentro das calças.

Abro meu caderninho e repasso alguns pontos importantes. “Vamos?”, o assessor da Taís me chama.

Pego minhas anotações, uma garrafa d’água e, da coxia, ouço a Presida me apresentar. Entro no palco, todas as cadeiras estão ocupadas. Na primeira fila ele: Zico! Puta merda, já me desconcentrei. Aproveito o deslize e faço uma piada com o acontecido. Das vantagens de ser comediante: se você conseguir contar, de um jeito engraçado, as merdas que faz, o povo lhe paga para isso.

Aos poucos, retomo os trilhos, a plateia me ovaciona quando faço troça do Fluminense e do Vasco. Sacaneio alguns jogadores e, claro, o técnico. Termino o show dando a moral que merecem — e que meu pagamento precisa. Aplaudem de pé. A formalidade das premiações é dividida entre a seriedade da Presida e minhas chacotas.

Prêmios e gargalhadas entregues, vou para o camarim. Quando chego, a mãe, o Carlinhos e a Marília me esperam com o espumante aberto. Brindamos uma dose atrás da outra. Até que somos interrompidos, Taís está na porta. Abro e ela entra com as mãos para trás.

— Contei sua história no conselho, Rafael.

— Sério? Começo na zaga ano que vem? Só jogo se for capitão! — Todos caem na gargalhada.

— Você foi sondado, mas deixou a desejar na parte física. — Ela aponta com os olhos para minha barriga de cerveja.

Taís descruza os braços de trás do corpo e estende um troféu na minha direção. Meu nome e a data de hoje estão gravados nele.

— Para você lembrar que nem todas as vitórias estão na nossa sala de troféus.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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