Carol Canabarro
Quando vi, estava espichando os braços finos para pegar O Pequeno Príncipe da estante. A essa altura, achava que ela já teria memorizado todas as passagens do livro. Perguntei, sem querer ofender, de novo esse? Ela esticou os lábios, levantou as bochechas e tentou, sem sucesso, piscar um olho só. Sorri de volta.
Foram horas folheando as páginas, depois rabiscou um ou outro desenho. Quero aprender a pintar com aquarela, confessou. Tem tanta coisa mais importante para aprender e aquarela não dá dinheiro, retruquei. Ela apertou as sobrancelhas, largou o livro e foi para o banho.
Precisei interrompê-la. Era quase hora de sair e ela continuava lá, deixando a água correr. Saiu com o olho vermelho. É do cloro? perguntei. Não, uma garota brigou comigo. Estranho, ela não era de briga e nem de choro. A amiga não quis dividir a mesa de trabalho, lamentou. Sentamos e expliquei que, às vezes, nem todo mundo quer a mesma coisa e a gente deve respeitar o outro. Acho que não somos mais amigas, a voz saiu fraca. Paciência, pedi sem saber explicar como fazer para alcançá-la, e fui fazer minhas coisas.
Outro dia a encontrei brincando com os gatos. Com um jogava bola, com o outro balançava um cordão e no terceiro dava leves palmadas nas costas. Achei curioso como ela os tratava de forma tão diferente e, ao mesmo tempo, com a mesma dose de amor. Apesar de orgulhosa, preferi não interromper a diversão com raciocínio lógico.
Gosto de observá-la. Especialmente quando ri. Não, na verdade, quando gargalha. O nariz fica espremido, a arcada superior projetada para frente e de tanto apertar a cara, lacrimeja. Como é bom vê-la chorar de rir e, respirando feito porco, reclamar de dor nos carrinhos. Não tem como não se alegrar junto.
Quer ver quando vai à praia. A gente tem que ficar de olho, porque basta uma bobeira e ela tá lá no fundo, anunciando: pareço uma sereia! Nunca vi o tanto que gosta de mar. Com a água no pescoço, me abana e eu a chamo de volta. É perigoso, alerto. Eu rio na cara do perigo, diz petulante e referenciada.
Às vezes penso que é mais de uma. Se o assunto interessa, fala pelos cotovelos, conta, inventa, aumenta e imita histórias. A voz esganiçada quase irrita, mas os causos são tão divertidos que relevo. Se está mais calada, deixo. Ela não é feito computador velho que faz barulho ao processar. Depois de um tempo, vem com uma sacada, um ensinamento, e me questiono, onde essa menina aprendeu tudo isso?
Diante do espelho, seus olhos me capturam. A cor é a mistura do azul da avó com o verde do pai. O olhar, ah, esse é da mãe. E as olheiras? sussurra. Essas são suas mesmo. Damos de ombros.
Tento, mas não muito, pentear seus cabelos, fazê-la dormir cedo, correr um pouco menos, se alimentar melhor. Talvez se fosse mais serena, não tão impulsiva, eu poderia protegê-la da vida que vem pela frente. Não posso. E nem sei se devo. É ela, esse vulcão em fogo eterno, que me trouxe até aqui. E, por mais percalços que tenha passado, gosto de onde cheguei e gosto de manter, a criança em mim, viva.
Agora, é ela quem me observa. Para e aponta a primeira página do Pequeno Príncipe. Menina esperta. Fez eu escrever tudo isso para desejar, aos que ainda não cresceram e aos que já viraram adultos (mas não abandonaram sua meninice), um Feliz Dia, Crianças.