Contra o tempo


Carol Canabarro

Chego à Estação Esteio, passo o cartão de embarque e, de bicicleta, entro pela cancela lateral. Desço as escadas com a magrela a tiracolo e enquanto espero, devoro o sanduíche que fiz para almoçar. O trem chega e o vagão, destinado aos ciclistas, está razoavelmente livre. Acomodo a bici no suporte e a mim na parede oposta, os bancos estão ocupados.

Não pego o celular, quero aproveitar o tempo da viagem para repassar a próxima aula. No meio do “aquecimento”, sou interrompida pelo som de uma JBL e seu dono, autointitulado rapper e dentista “porque faço o povo mostrar os dentes com as minhas músicas”, ele explica. Rimando, passa por mim e solta:

"Olha ela, de capacete indo trabalhar
Com as pernas, faz o mundo girar
De trem e de bike, duas vezes protege a natureza
Assim, fica fácil, explicar de onde vem tanta beleza"

Os aplausos reverberam pelo vagão. Acho que algumas palmas são para os versos, outras por quem sou. Nós dois sorrimos em agradecimento. As moedas vão todas para o MC.

O show faz a viagem passar depressa. Desço do trem, carrego a magrela, agora, escada acima e, fora da estação, olho para o relógio. Preciso chegar em trinta minutos na escola. Coloco um fone no ouvido – nunca ponho os dois para conseguir ouvir o tráfego - e parto para o trabalho.

Tomo a Avenida Sertório que, no verão, parece feita de lava. Ando colada ao meio-fio. Apesar do asfalto irregular, não me arrisco, como outros ciclistas, a andar no corredor de ônibus. Prefiro seguir as “leis de trânsito”. Chego à quadra alguns minutos adiantada. É o tempo de tomar uma água, trocar a camiseta e enfrentar a primeira turma.

Entre uma aula e outra, percebo nuvens carregadas no céu. Depois desse calorão, só pode vir temporal. Não posso me atrasar para voltar. Se perder o trem das dezesseis horas, vou ter que esperar passar a hora do rush para ir para casa. Não dá para pegar a BR de bicicleta em dia de chuva.

Ministro a aula com um olho nos alunos e o outro nos ponteiros. Vez ou outra direciono os dois para o céu, como se pudessem segurar as gotas que se armam para cair. Encaminho as crianças para o refeitório com a estagiária (hoje vou pular a merenda) e traço o caminho de volta.

Se na ida o sol parecia estar na minha garupa, na volta é uma grande molhaçada. Os pingos reforçados alagaram de pronto as ruas. Apesar de conhecer o caminho, redobro a atenção. A água de cima camufla os buracos embaixo. Sem contar o fenômeno da Impacientice Aguda que acomete os motoristas em dias chuvosos, me fechando mais do que o habitual.

Na última sinaleira da Sertório, olho as horas mais uma vez. Tenho quinze minutos para chegar ao trem. Normalmente, faço os dois últimos quilômetros em menos de dez minutos. É a única parte do meu trajeto com ciclovia e, sem dúvidas, isso ajuda. Aproveito a segurança do meu espaço de direito no asfalto e acelero.

Alguns metros antes de chegar à estação, numa curva, um carro sai da pista em direção a calçada. O motorista não me vê. Eu não vejo o motorista. O encontro me faz voar da bike. Por sorte (?), o carro cortou a ciclovia antes de mim, não me pegando de frente. Quem viu a cena teve a sensação de que eu queria entrar pela porta do carona com bicicleta e tudo.

O motorista desce do carro gritando “Você está bem? Eu também sou ciclista! Pelo amor de Deus, me perdoe”. De pé, apalpo meus joelhos, cotovelos e dedos. Aprendi em outros acidentes que, com a adrenalina, a gente pode quebrar um osso e nem perceber. “Tu tá sangrando! Vou te levar para o hospital”. Encharcada e inteira, vejo o sangue escorrer pelas canelas. Desviro o guidão, olho o relógio e respondo, já sentada na magrela: “Valeu, mas não vai dar, moço. Tenho menos de cinco minutos para pegar o trem” e saio em disparada.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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