Amor Fati, 2023


Carol Canabarro

Você está cansado. É sábado à noite, o dia foi de semana longa. Há tempos tem sido assim. Está cedo para dormir e tarde para sair. Você pergunta o que ela quer fazer. Assistir uma série, um filme, bater papo? Você não lembra a última vez que tiveram tempo para dois. Ela descansa o corpo ao seu lado do sofá, coloca o pé gelado, apesar do calor, por debaixo da sua coxa. Conversar, responde. Algum assunto especial? você quer saber. Sobre a vida, ela anuncia com voz de locutor. Vocês riem balançando a cabeça.

Quer uma cerveja? você sugere, ela nunca nega. Você se levanta, coloca o gato onde antes estava. Traz a bebida em único copo. Oferece o primeiro gole. Ela toma, suspira.

Aquela sexta-feira treze de janeiro, parece não ter fim, ela fala. Você lembra da primeira vez que viu o medo em seus olhos e senta entre ela e o gato. Ela lhe devolve o copo. O assunto mal começou e parece já ter chegado ao fim. Você não sabe o que dizer, emudece. Seu silêncio de resposta a faz continuar.

Mas, olhando daqui, é até curioso. Você fica curioso com o comentário. Se pensarmos no todo, foi um ano bom, tivemos nossos momentos. Você concorda. Ela lista as viagens. Por duas vezes mergulhamos no mar do Nordeste, você responde quase sentindo o frescor da água com sal tocar sua pele. Ela lembra do pôr do sol. Você a abraça como naquela tarde em Salvador.

Fizemos amigos ela comemora, reforçamos laços você completa. Alguns ficaram para trás, a voz dela é reticente. Amizade verdadeira se revela nos momentos de maior sucesso e maior desventura, nós vivemos de tudo esse ano, as cisões acontecem assim. Você está certo, ela concorda mesmo não gostando da realidade.

Ela vai até a janela. Está nublado. A Alexa disse que chove de madrugada, você avisa, de novo. Ela olha para caixa de roupas e sapatos no canto da sala. É a terceira vez esse ano que vocês doam as famílias que, do quase nada que tinham, perderam tudo com as enchentes. Segunda entrego na prefeitura ela promete.

Profissionalmente, esse foi o melhor ano da minha vida, você anuncia. Ela se vira para você com os olhos iluminados. As estrelas que faltam no céu povoam a sala. Sério? diz. Se ajeita no braço do sofá e te dá um beijo no pescoço. Sua nuca arrepia, você se contorce e o movimento expulsa o gato do sofá.

E para você? Foi um ano produtivo, não? Você quer trazer para luz as vitórias dela também. Pois é, produzi bastante, participei de concursos, dei aula... comecei meu livro. Você pode ver o orgulho nas suas palavras. Ela está feliz. Não achei que fossemos conseguir, ela admite depois de tomar mais um pouco da cerveja.

Perdemos alguns sonhos pelo caminho, as palavras dela saem encolhidas. Adiados, você remenda, a gente tem tempo. Ela aponta para os dois únicos fios de cabelo branco em sua cabeça: será? Você a chama de boba. Envelhecer é um privilégio, vocês sabem disso.

Os joelhos dela estão na altura do seu rosto. Você desliza os dedos nas cicatrizes e, com a mão sobre as marcas, fala de como ela jogou, o ano inteiro sem lesões. Ela bate palmas para si. Quase um milagre, obra do caqui verde, afirma. Vocês se dobram de tanto rir da piada que só vocês irão entender. Os maxilares apertados forçam suas pálpebras. Vocês tinham esquecido que era possível chorar de rir.

O gato derruba o pote de ração. Vocês olham juntos para o relógio no computador, quase meia noite, ele deve estar com fome. Você quer deixá-la rindo mais um pouco e vai até a cozinha alimentar o bichano. De repente, a sala fica quieta. Você volta para a companhia dela. A encontra com o olhar perdido nas nuvens. Sabe, 2023 foi um ano difícil, não há como negar, mas eu o viveria de novo, ela confessa. Você enaltece sua coragem.

Amor fati, ela sussurra. Você ouve as palavras, mas não compreende o sentido. Nietzsche, te responde. Você precisa de mais, ela completa: é amor ao destino, não querer nada de diferente do que é, nem no futuro, nem no passado, é aceitar e amar o que nos foi dado e tirado.

O gato, com a barriga cheia, sobe no seu peito e ronrona. Vocês alternam carinhos no seu pelo. O copo esvazia e quando as primeiras gotas de chuva começam a cair, vocês já estão debaixo das cobertas, seu corpo colado ao dela, entregues ao (ano) que vem.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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