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Carol Canabarro

Cheguei pouco antes do meio-dia à casa dos meus pais. Dona Zélia e Seu Martim aproveitariam o almoço de Páscoa para comemorar a chegada dos meus trinta anos. Apesar de não sermos uma família religiosa, conciliávamos as festas. Sempre achei curioso o fato de ter nascido nas redondezas de um feriado que exalta a ressurreição.

Nem bem coloquei os pés dentro da casa, meu pai veio em minha direção com um papel na mão, comemorando: “Minha filha, parabéns! Esqueci de avisar ontem ao telefone, nessa semana chegou uma carta pra você.” Carta? Quem nos dias de hoje manda carta? Larguei a bolsa no sofá, abracei o velho e peguei o envelope.

De cara, reconheci a caligrafia arredondada, os is com bolinhas no lugar do ponto e os tês cortados precisamente ao meio. Coisa de quem é meticulosa e tem tempo para se demorar no desenho da letra.

Fui até a varanda, cumprimentei o restante da família, me escamoteei na sombra da antiga árvore no quintal e sentei na minha raiz preferida. A leitura merecia atenção e solitude. Abri o envelope com zelo, o perfume de bala Soft encheu minha retina.

Nas primeiras linhas, recordei sua gentileza; logo quis saber como estou, se a saúde ia bem. Mentalmente respondi que tinha uma dor aqui, outra ali, mas nada grave. Depois quis saber se eu estava casada, com filhos e se tinha me formado em Filosofia. Usei um único não para todas as perguntas. Nada que a desapontasse. Nesses anos vivi amores, empurrei os filhos para o futuro e, sim, havia me formado, mas em Biologia.

A voracidade das perguntas me fizeram recordar sua agitação, sua pressa em viver tudo o tempo todo. Perguntou dos amigos e familiares. Expliquei que a distância e o tempo levaram alguns para longe e, os preciosos permaneciam, se não no cotidiano, nas boas memórias.

No parágrafo seguinte, quase ouvi sua respiração. Ela queria saber se aquele grande sonho do passado fora realizado: o livro. “Você escreveu? Publicou?” Meu coração amiudou. Não, não havia chegado nem perto. A decepção foi como mil cortes de papel.

Mas as verdadeiras aspirações nunca são desfeitas, apenas transmutam. Revestem-se, ressignificam-se. Contei que uma decepção e poucas oportunidades me impediram de prosseguir e que, depois, me fechei para o mundo. Foram longos anos carregando meu próprio cadáver.

Perdida, acabei me envolvendo com um cara narcisista. Entreguei minha juventude e amor em suas mãos, enquanto ele me desmontava. Distorcia meu passado para manipular meu futuro. Por causa dele neguei quem fui, neguei você. E, por muito pouco, não morri. Um dia, me dei conta de que, para voar, é preciso estar leve. Abracei meus medos e, nas asas dos meus demônios, fugi. Abandonei-o e tudo que tinha, para seguir adiante.

Sem mais nada a perder e com um mundo pela frente, recomecei. Não do zero, porque a gente sempre parte de algum lugar, aprendi isso com uma conhecida no intervalo da faculdade. Fui acolhida e protegida por quem sempre me amou como sou: meus pais e amigas. Depois de um tempo, fui trabalhar numa instituição que ampara crianças. Cuido da horta e leciono Ciências aos pequenos. Curo as feridas no voluntariado, doo meu tempo e sou paga com vida. Contabilizo meus sucessos em sorrisos alheios.

Achei que a faria sofrer com todos esses relatos. Mas em suas últimas frases, ela me apaziguou. Perguntou se eu continuava sendo uma pessoa justa, generosa, cordial, carinhosa e ocupada em fazer deste mundo um lugar melhor. E arrematou:

“Para mim não importa o que você tenha feito, aonde tenha ido, quais suas posses ou a falta delas, o que mais me importa é saber quem você se tornou.
De onde estou, nunca saberei a resposta, mas tenho a absoluta certeza de que você fez o seu melhor e estou orgulhosa da mulher que é.”

Desejei, como nunca, abraçá-la.

Impedida pelas leis da vida, resolvi seguir seus passos. Na mesma tarde, peguei papel e caneta e escrevi outra carta, a ser entregue no meu aniversário de cinquenta anos.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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