Mais do que um pedaço


Carol Canabarro

Não gosto de jantar fora. Naquela noite, não consegui evitar. Era confraternização da empresa e todos os colaboradores deveriam celebrar os números positivos do final do ano. Como supervisora da região mais lucrativa deveria me fazer presente.

Nossa mesa estava reservada, o que nos fez pular a fila de espera. As mesas ocupadas e as garrafas de espumante abertas a cada quinze minutos, geravam um ruído de réveillon preguiçoso. O garçom distribuiu os cardápios e rapidamente meus colegas fizeram seus pedidos. Eu não conseguia encontrar no menu algo condizente com meus valores. Três voltas depois, escolhi uma salada.

Conversas e risadas se amontoavam e o barulho limitava minhas interações com as pessoas ao lado. Sentei entre um conhecido desconhecido do jurídico e uma ainda menos conhecida da contabilidade. Não lembrava o nome deles e perguntar seria deselegante, confesso que também não me importava não saber. Mantivemos os assuntos na superfície das trivialidades para não corrermos o risco de atolar.

Algumas taças depois, recebi minha porção de folhas e verduras. Do outro lado da mesa, a vi chegar em vermelho-sangue. Olhos de desejo voltaram-se em sua direção. Um colega, três cadeiras adiante, passou a língua pelos lábios e sorriu trêmulo. Outro bateu palmas mudas, imitando um aniversário fictício. Eles pareciam eufóricos com a sua presença. Os músculos do meu rosto se contraíram. Travei as mandíbulas. Não havia como escapar àquela presença.

O tilintar dos talheres era trilha sonora de pequenos sinos, todos desafinados. Evitava olhá-la, mas era impossível não ver. Na verdade, imaginava um sem fim de possibilidades. Pensava no seu cotidiano, nas suas batalhas vencidas e perdidas. Fantasiava ela tomando banho de chuva no campo e sentindo a grama molhada afundar sobre si. Será que teve filhos, me questionava. E se teve, os amamentou ou nunca chegou a sentir o cheiro adocicado e azedo do leite esquecido no canto da boca da cria? Dos seus rebentos imaginários, me perguntava se temeu perdê-los. Conhecera paz? Desejava saber, não pelo que era chamada, mas seu nome real, se é que tivera um. Não tinha nenhuma das respostas, mas decifrava todas.

O advogado fez o primeiro corte e foi como se uma armadilha de urso fechasse minha garganta. Levantei deixando cair o guardanapo do colo. Inventei um mal-estar repentino, nada imprevisto. Queria sair dali. Buscar ar, vida.

De pé, com uma das mãos tapando a boca e a outra acenando desespero, olhei-a uma última vez. A contadora tocou minha cintura e tentou me convencer a ficar dizendo: mas já? você não vai provar a picanha? Meus olhos encheram d’água. Toda uma existência resumida a uma fatia. E ela parecia ainda sangrar.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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