Carol Canabarro
Quando bateu meia noite, ele entrou sem que eu precisasse abrir a porta. Passou por mim com um sorrisinho costurado no canto da boca, largou a mala no corredor, sentou na minha poltrona preferida e bebeu do meu copo. Sempre pontual, falei. Ele cruzou os braços atrás da cabeça, reclinou o tronco e, sem nenhum constrangimento, apoiou os pés na mesa de centro. Te achei meio magra, comentou com os olhos amarrados nos meus. Abusado esse aí, falei para mim mesma.
Gastrite, né? Fiquei sabendo, disse ainda pregado na minha íris. Respondi com um pois é. Das minhas coisas eu já sabia, estava mais interessada nas dele. Asseado, blusa e calça branca de linho, perfume cítrico-amadeirado, cabelo sem um fio sobrando ou faltando, pele do rosto ausente de rugas, olhos de abismo e o sorriso, ainda de ponto cruz. Gostei. Você sempre gosta, ele respondeu como se eu tivesse elogiado alto.
Fica bastante, né? Eu disse olhando para mala. Ele piscou demorado. Tá curiosa? Quer saber o que eu trouxe para passar esse tempo aqui? Ele sabia me provocar. Sempre quero, mas ninguém nunca me diz, retruquei. Em um único movimento, não sabia que podia ser tão ágil, ele descruzou os braços, botou os pés no chão, se levantou, caminhou na minha direção e parou bem próximo do meu rosto. Senti o hálito fresco de hortelã.
Achei que ia te encontrar mais esperta, soprou. Posso te dizer o que eu trouxe, se você me disser o que tem para mim. Ele gosta de jogos, como todos os outros antes dele, pensei e ele ouviu. Não é um jogo, mulher, é como a coisa tem que ser. O tom de voz ligeiramente mais agudo revelou a irritação.
Quero fazer coisas que nunca fiz, e vão ser com você, disse com o queixo projetado para frente e as sobrancelhas desalinhadas. Ele ergueu olhos e mãos para o céu e replicou, até que enfim. Encontrei o antigo hóspede na porta, ele bem me alertou que você estava cheia dessas ideias. Aliás, o camarada saiu daqui meio estropiado. O que você fez com ele? O abusado quis saber.
Cogitei dizer uns desaforos, perguntar se eles não tinham conversado antes dele entrar, se o anterior não tinha contado das surpresinhas que trouxera, dos malabarismos que fiz para não deixar quebrar meus pratos, de como o velho tinha sido trigueiro comigo, mas me contive e respondi com uma palavra “gastrite”. Dessa vez gargalhamos juntos.
Ele se afastou um pouco, fez sinal para que eu sentasse na minha poltrona, pegou a bagagem e se acomodou aos meus pés. Conforme retirava os pacotes da mala, me explicava. Trouxe nove pares de paciência, você precisa toda hora; sete camisetas para trabalho, não se preocupe, elas não transpiram e podem ser lavadas na máquina; e quatro calças de generosidade. Três são para uso próprio. Vi que ano passado você não usou nenhuma consigo. Depois não adianta reclamar de dor no estômago, me disse enquanto se arrumava para fechar a bolsa. Fiz menção de pegar o pacote dourado que ele tentava esconder. Levei um tapa na mão.
Eu sabia que ele não me deixaria ver mais nada. Conhecia o protocolo, ele vai se desembrulhando conforme as necessidades. Aos quarenta anos a gente sabe que não se apressa o tempo. Curvei os ombros. Ei ei, mocinha, sua voz macia me abraçou. Ergue essa cabeça, haverá dias que eu serei difícil, mas em outros, vamos rir até seus carrinhos arderem. Não resisti e beijei seu rosto.
Ele botou minhas mãos entre as suas e falou com voz de mãe que finge dar uma bronca, que era hora de eu deitar e continuou, amanhã temos muito o que fazer e eu garanto, você vai adorar meus 366 dias.