Carol Canabarro
— Camila, tava aqui pensando uma coisa.
— Ixi! Lá vem.
— Sério. Vê se tu não concorda: a gente tinha que acabar com todos os deuses e deusas.
— Pronto. A essa hora, Sandra?
— Presta atenção: desde que o mundo é mundo, a gente fica nessa de criar deuses e deusas. Conforme a gente evolui, transforma os antigos deuses em mito pra criar novas divindades. Olha onde isso nos trouxe. Tá na hora de interromper o ciclo.
— Verdade. O Brasil tá aí pra provar que mito é furada.
— Sim, Camila, mas não tô falando só da distopia que aconteceu no país. Tô falando pro bem da humanidade.
— Lelê! Por gentileza, traz mais uma? Vou precisar pra empurrar essa.
— Eliminando todos os deuses e deusas, vamos ter que nos responsabilizar pelos próprios atos. Não vai dar pra se esconder. A gente vai ser melhor.
— Quem falou isso pra você, Sandra? O ser humano é tosco. A gente não tem mais salvação. Já joguei a toalha.
— Então pega de volta.
— Vou te dar corda. E como seria esse deusnicídio?
— Nessa parte não pensei ainda.
— Na Marvel tem um tal de Thanos que matou geral, não tem?
— Sim, Camila, tem. Mas aí o povo ia endeusar esse deus que matou os outros. Lá na frente ia dar problema de novo.
— Finalmente, Lelê. Enche bem o meu copo. No dela põe só cinquenta centavos.
— Claro, gurias. Precisam de mais alguma coisa? A cozinha já vai fechar.
— Não, obrigada. Ainda estamos digerindo o papo.
— Tu me faz parecer maluca na frente da garçonete.
— E não é, querendo extinguir todos os deuses? Não foi Nietzsche quem propôs isso?
— E eu lá sei? De filósofo só conheço o Paulo Coelho.
— Ele te mataria antes de você matar os deuses dele.
— Nada, o cara é bruxo.
— Não quero pôr um deserto na sua ideia, mas Suassuna disse que o homem tem necessidade de Deus e, por essa necessidade, acredita em Deus.
— Com esse, não discuto. Também acho que a gente tem necessidade de deus. Como os bebês têm dos pais. Mas, depois que a gente cresce, tem que se virar sem eles. É da natureza.
— Acho que começo a te entender. Ou é a cerveja fazendo efeito.
— Tô dizendo. Vai por mim.
— Certo. E numa segunda-feira quente de janeiro, como faz isso?
— Vamos ter que começar de pequeno. Educar as crianças, usar os meios de comunicação, as mídias, a cultura, essas coisas. Trabalho de formiguinha.
— Vou pedir mais duas.
— Ainda tem um tanto aqui.
— Não vai ser suficiente. E você vai precisar.
— Eu? Por quê?
— Sandra, como diabos você vai acessar a educação, a comunicação, a cultura, as redes sociais?
— Ainda não cheguei nessa parte, mas, se deus quiser, a gente consegue.