Carol Canabarro
Como quem desistia de segurar o mundo com as mãos, depositou a caixa na mesa da sala. Na cozinha, pôs no congelador duas garrafas de cerveja, resquícios da noite anterior. A mochila, pronta ao lado da porta de saída, era pequena. Cabia quase nada, mas quase nada era seu muito. Lavou, com o lado verde da esponja, as panelas do jantar de uma pessoa só. Olhou o relógio: dava tempo de fumar um cigarro e dissipar o vício antes de ele chegar.
Seu pai era um cara sério, centrado, de raciocínio lógico e apurado. Conversar com ele era perguntar as horas a um Rolex recém-saído de fábrica. Apesar de não serem dados a muita intimidade, ela sabia que precisava se despedir do velho antes de partir.
Abanou a fumaça da última tragada minutos antes da campainha tocar. Abriu a porta, trocaram sorrisos remendados. Enquanto ele se acomodava no sofá, coberto por uma manta de esconder furos, ela foi até a geladeira. Por certo, precisaria de algo para ajudá-lo a engolir o que viria.
À medida que enchia o copo, esvaziava os pulmões acinzentados:
— Pai, amanhã de manhã, mudo para o Planalto.
Ele tirou os olhos do copo cheio, depositou-os sobre a filha e voltou-os ao copo. Sem dizer palavra, tomou metade da cerveja, deixando-o meio vazio.
O espaço mudo espremeu a garganta da filha. Tropeçando nas palavras e ignorando o encadeamento das ideias, elencou os últimos acontecimentos. Com a academia fechada, podia muito bem tentar a vida em outro Estado. Era jovem. Exaltou sua inteligência hereditária e afirmou poder aprender qualquer coisa. Trabalho nunca ia faltar.
O pai, com os olhos fixos na mochila, só abria os lábios para a bebida, era um Buraco Negro no meio da sala.
Ela, controlando a boca trêmula com joysticks descalibrados, continuava atropelando os próprios argumentos. O casamento estava na vala, cavada a quatro mãos que fique claro, lembrou com o dedo em riste, não tinha mais jeito. E, ainda que tivesse, não estava disposta a perder mais unhas. Com o ar no limite de acabar, desatou a falar da família, prometendo que os visitaria de quando em quando. Não seria novidade conviverem pouco. Quanto aos amigos, nenhum embaraço. Faria novos, a simpatia por parte de mãe ajudaria e, quando voltasse à cidade natal, apertaria os laços que, porventura, afrouxassem. Solucionava todos os problemas que criava. Uma mágica fazendo truques para si mesma diante do espelho, espantada com a ilusão.
A conversa se dava entre uma lata de ervilha enferrujada e um abridor de pano. Os copos revelaram o fundo. Era a deixa que precisava: foi buscar outra cerveja e, quem sabe, mais argumentos. Titubeando, trouxe-os:
— Vou embora, quero ser feliz.
Ele aproximou os lábios das orelhas sem revelar os dentes e, pela primeira vez, largou o copo na mesa de centro bamba.
— Filha, a gente não precisa de muitos motivos para fazer algo, basta um único. E certo.
Servidos, ela pegou a caixa pesada e entregou-a leve para o pai. Explicou ser preciosa, mas, tamanho volume, não conseguiria carregar. Optou por deixá-la aos seus cuidados. Ele retirou a tampa. Estava repleta de fotos de um tempo que nem o tempo amarela. Passou os dedos pelas imagens, separou uma. Entregou-a para filha: um retrato dele a carregando nos ombros.
— Fica com essa, caso falte motivo para voltar.