Ainda existo


Carol Canabarro

Acordo pelos pés. A maresia belisca meus calcanhares e me expulsa do transe, estou de volta a minha condição. Passo as mãos nos meus cabelos de areia, esfrego o rosto. Os dedos de unhas mastigadas desembaraçam minha visão. Sento. No horizonte, o sol separa céu e oceano com um único traço. Levo duas bocejadas para reconhecer o lugar.

A orla, tão cheia de vida, nesse momento, pertence a mim e a um gari. O laranja cansado do seu uniforme contrasta com a brasa hipnótica do cigarro, abandonado no canto da boca. Uma tragada, tudo que sou por uma única tragada. O dia apaga a noite. Caminho. Quando passo pelo homem, sua vassoura quase roça meus pés nus. Seus olhos, antes pregados ao chão, voltam-se para mim e não me vêem. Apenas a fumaça do tabaco me persegue.

Dou as costas para o mar e caminho em direção ao terminal. Para onde vou não existe linha de chegada. Minha cabeça não move para os lados antes de atravessar a avenida. Abandonei apegos e, por sorte, essa não é rota dos escritórios. Do outro lado, uma mulher com nariz de espada, abre o portão do prédio com uma mão, e com a outra, segura a alça da mochila de um menino com pernas de flamingo. Passo. Com esforço, ela poderia me ver, mas nega. O olhar do menino quase me captura. Um segundo depois, se dissipa.

O sol desconhece marcha ré. Se tivesse casaco, o tiraria. Procuro disfarce na marquise da lanchonete. Trabalhadores batem ponto nas mesas. Pão, café, cachaça. Não estranho, eu costumava fazer o mesmo. Um pedaço, um gole, dois goles, o copo inteiro. O cheiro do alimento aperta meu estômago contra os pulmões. Jejuar ainda não se tornou hábito. Ouso. Ameaço entrar e, anotando um pedido, a garçonete faz-se muralha. Antigamente, ela me concederia um bom dia forçado, agora nem me percebe. Não pertenço a esse lugar.

Sem rumo, rumino o próximo passo. Na esquina, escoro meu resto de corpo num tronco de árvore. Um cachorro, quase feito de costelas, cavoca o lixo do bar. Olho. Ele aponta o focinho na minha direção e repousa em meus pés. Não consigo parar meus braços e o acarinho. Deslizo meus dedos sobre parte da pele que, outrora, deveria estar cheia de pelos. O rabo balança o animal.

Cansado, o sol começa a rabiscar suas últimas linhas. É minha deixa. Sigo. O cachorro me segue. Paramos em frente a uma loja de antiguidades. Na vitrine, reconheço um espelho. O meu velho espelho de moldura retorcida. A última coisa que tive antes de não ter mais nada. O vendedor sai da loja, esquiva-se e, enquanto abaixa a cortina de ferro, procuro meu reflexo.

O cachorro e eu ainda estamos lá. Suspiro. A rua não nos tornou invisíveis, mesmo que todas as outras pessoas insistam em nos negar.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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