Carol Canabarro
O primeiro encontro foi aos oito anos de idade, logo depois da separação dos pais. Ela voltava da escola, quando parou na faixa de pedestres e não conseguiu identificar se o sinal estava aberto ou fechado. Coçou os olhos e nada. As pessoas do outro lado da rua ficaram aos pedaços: nariz no meio da testa, braços pendurados sem tronco, olhos derretendo. O mundo não era mais como o conhecia. Confiou nas pessoas ao seu lado e, quando percebeu elas caminhando, cruzou a avenida sem enxergar.
Sua casa ficava a menos de uma quadra, ela já tinha feito esse caminho centenas de vezes, era só seguir os instintos. A questão é que, com a visão embaralhada, o estômago virou do avesso. Os metros que separavam a casa da sinaleira foram marcados por poças de vômito.
Mais do que o cheiro ácido, a força que fazia para expelir o que havia dentro de si, causava náuseas. Vomitar a fazia vomitar. Encostou-se no portão de casa e, para seu espanto, não sentiu as mãos. Estendeu-as em frente ao rosto e viu faltar dedos. Nessa altura, regurgitava suco gástrico.
Abriu a boca para chamar sua mãe, mas não encontrou as palavras no cérebro. Ela sabia o que queria dizer, mas não sabia como dizer. O braço bobo deu um encontrão na porta, a bile entrou antes.
Com o estardalhaço, a mãe veio ao seu encontro, a agarrou pela cintura e a guiou até o banheiro, a menina balbuciou palavras desconexas. Entre uma golfada e outra, a mãe decidiu colocá-la dentro do carro e levar a filha para o hospital. Sua visão agora não era mais fragmentada, mas como se mil estrelas piscassem e bloqueassem seus olhos. O enjôo não cedia um milímetro.
Dado o seu estado, foi atendida quase de imediato. Era isso ou a mãe quebraria a recepção. Eles optaram por dar à garota uma boa dose de Plasil na veia. Em pouco mais de meia hora, voltou a enxergar, a sentir os dedos e a falar. O estômago tinha voltado para terra firme. Não fosse a dor pulsante nas têmporas a impedindo de recostar-se no travesseiro, poderia dizer que estava bem.
De volta para casa, passou 24 horas em um quarto escuro. Todo e qualquer cheiro enosava o estômago, seus ouvidos não suportavam som, cada fio de cabelo latejava. Tinha certeza de que ia morrer. 48 horas depois, brincava e sorria como se nada tivesse acontecido. Estava tão grata de voltar a ver, sentir, falar, ouvir, cheirar e ser criança que não se preocupou.
No aniversário de dez anos, novo encontro. A mesma coisa, perda da visão, náusea, bile, perda do tato, da fala, estrelas piscantes, dor de cabeça, fobias da luz, do som e do cheiro. A certeza de que morreria. De novo, não morreu. Suportou o evento com resignação. Era uma festa surpresa. Suas olheiras nas fotos pareceram registros de halloween.
As crises continuaram durante a adolescência. Como o protocolo era sempre o mesmo, quando olhava para suas mãos e não via alguns dedos, corria para casa e esperava a tempestade passar. Aos dezenove anos, na mesma semana em que foi demitida e descobriu não ter passado no vestibular, teve três crises. Procurou um neurologista.
Exames feitos, ele olhou nos seus olhos, pousou as mãos sobre a mesa e disse com a voz escorrida: o que você tem, não tem cura; mas o tratamento é simples, não precisa nem de remédio, basta você não se estressar. Riram muito. Ela perguntou se poderia morrer disso, uma vez que metade da família tinha falecido de AVC. Ainda sorrindo, o médico respondeu: fica tranquila, a dor do AVC é bem mais forte e você vai sentir uma vez só. Ele ainda sorria, ela achou melhor guardar os dentes e ir embora.
Assim, ao longo dos anos, perdeu aulas, festas e a serenidade. Uma vez fez um cálculo de que se, em média, tinha seis crises por ano (chute baixo), em 30 anos, passaria seis meses em um quarto escuro, esperando a dor desaparecer. Isso tudo, sem hora nem lugar marcado. Era refém do próprio cérebro.
Sem opção, começou a aproveitar os isolamentos forçados para se estudar. Revisava cada passo, cada comportamento, cada ação feita nos dias que antecediam uma crise. Com quase 35 anos, encontrou alguns padrões: dormir pouco, ingerir produtos derivados do leite, beber vinho tinto e, claro, se estressar, eram prenúncios de quarto escuro. O fator estafa era o mais evidente e o menos passível de controle. Foi então que se deu conta de algo.
Suas crises eram a última tentativa do corpo de fazê-la desacelerar, como disjuntor que cai para evitar curto-circuito. Era um sinal, um pedido de ajuda do cérebro, dizendo que se continuasse naquele ritmo, ele ia fritar. Compreendeu.
Hoje em dia, quando percebe que está sob altos níveis de cortisol, já se prepara. Normalmente, o desespero aparece quando relaxa um pouco. Sem questionar, para tudo o que está fazendo, fecha os olhos e, durante 45 minutos, assiste sua mente bagunçar os próprios sentidos. Depois, levanta, toma um terço da caixa de Neosaldina, diminui o passo e retoma a vida.
Ela sabe que ainda se encontrarão incontáveis vezes (ontem mesmo aconteceu), mas agora, tem certeza de que não vai morrer de enxaqueca. O que a ajuda não deixar de viver.