Carol Canabarro
A rodinha da mala emperra na calçada milenar e Diego resmunga, mais para si do que para o taxista, o atraso da cidade. Da shoulder bag retira a chave com feições de pincel atômico. Maneskin toca estridente no fone de ouvido abraçado a sua cabeça. Com um solavanco desproporcional, a bagagem se solta, os olhos dele voltam-se para a herança: Libreria Romana. Cringe, pensa com o nariz franzido enquanto se dirige à porta de madeira puída.
Na terceira tentativa, tem ganas de arrombar a fechadura. Em meio ao cálculo, percebe ao seu lado uma senhora: cabelos escondidos em lenço, jardineira com manchas vermelhas, movendo os lábios de uva-passa. Oi? Resolve liberar a orelha direita para ouvir o que a velha balbucia. Deixa que eu te mostro, meu filho. Com as mãos amarrotadas, abre a loja enquanto revela: puxe a maçaneta para cima enquanto gira a chave, viu, meu filho? O cheiro de poeira estragada entope suas narinas. Os dois entram.
O recém-chegado tateia a parede na busca do interruptor. Me chamam de Nonna Mônica, comando a Casamonica Fiori, aqui do lado e acende a luz. Você é parecido com ele, nós éramos grandes associados. Não bastasse esse lugar carcomido, ainda tenho que aguentar essa metida, oculta o pensamento revelando ser Diego, afilhado do falecido dono. Ela sai arrastando os pés.
Antes encontre um lugar entre os livros para largar a mala, a florista retorna com um buque de peônias. Espero que goste do perfume, diz oferecendo-as para o rapaz. Finalmente ele lembra de agradecer. No que precisar, filho, conte comigo, a senhora fala, segurando o marco da porta. Seu padrinho e eu sempre fizemos bons negócios. Arrivederci.
Porca miséria! Diego desfaz-se das flores e afasta da bancada os quatro volumes de O Poderoso Chefão – ele nem sabia que os filmes eram adaptações - abrindo espaço para o fone. Se um velho se sustentou por anos vendendo essas porcarias, eu também consigo. E se não conseguir, vendo o ponto e me mando para Londres. Sem pressa, ele desfaz as malas e deixa para depois as instruções que o advogado lhe dera sobre o estabelecimento.
O primeiro mês o mastiga. A única entrada constante na livraria é das peônias mandadas, toda semana, pela vizinha. Diego faz anúncios nas redes sociais, pendura uma placa de wi-fi grátis na soleira, mas nada. Nem um único livro sai da prateleira. Em contrapartida, a floricultura vive com mais clientes do que abelhas. Gente de todo tipo, entra e sai com flores da Casamonica. Sério que tanta gente compra isso? Abre o livro-caixa para tentar desvendar os milagres do padrinho. Surpreende-se com o volume de vendas e, mais ainda, com os contínuos gastos em peônias. Tá aí, vou vender a livraria para essa velha, já que eram tão parceiros.
Esse não é otipo de negócio que faço, meu filho. É a resposta que o jovem consegue depois de esperar uma dentista, dois motoqueiros e um açougueiro serem atendidos. Resolve ser honesto: na real, quero ir para Londres, sabe? Você deveria comprar flores, ela diz movendo as mãos com destreza entre os arranjos. Sou aquariano, ele provoca.
Essas aqui são narcisos, conhece, meu filho? A voz moída dela pinica Diego. A senhora pode expandir a floricultura, ele tenta. Mas e os livros? Ela borrifa as flores enquanto desvia de um homem com ares de delegado. Sei lá, pode dar, jogar fora, usar de adubo. Livro é coisa do passado, ele arremata.
Nonna Mônica pega uma única peônia e oferece a Diego. Ele faz menção de recusar, mas ela é enfática: o passado é a mão que impulsiona o futuro. Pressiona a flor contra o peito dele e vira para atender a fila na calçada antiga.
O rapaz volta para a livraria, senta diante da caixa registradora, laranja de tanta ferrugem, larga a flor junto as recebidas durante a semana. O celular faz tremer o bolso da calça. É um e-mail do advogado perguntando como estão as coisas e se ele tem seguido à risca o que lhe foi pedido. Maldita burocracia. Ele não teve tempo para essas coisas, mas com o tempo dado pela falta de clientes, abre a pasta há um mês escanteada.
Só tem um envelope? Dentro dele, só uma folha. Diego sorri, não deve ser tão difícil. Lê e se sente estúpido. Em uma linha o advogado o faz compreender no que o padrinho estava e, agora ele, está metido.
“Aconteça o que acontecer, nunca deixe de pagar a propina da florista”.