Carol Canabarro
Mas tio, se o Sol é uma estrela, por que não dá pra ver ele de noite? Os cabelos de energia estática deixaram o rosto do menino mais arisco. Senti a camisa apertar meu pescoço. Devido a incidência da luz, emitida pelo Sol, em relação a rotação da Terra. Depois de 30 anos de carreira, era a resposta menos complexa que eu poderia dar aquelas crianças. Mas a questão, nunca elevada a tamanha simplicidade, deslocou meu eixo.
Meus olhos emitiam pulsares para a professora no fundo da sala. Quis desabotoar a gola da camisa. Dela, só vi projetar o lábio inferior para frente até quase dobrar o tempo. Mesmo sem querer, eu era o astro-rei e tudo o mais gravitava minha órbita. Ouvi uma cadeira ranger o piso, não precisei olhar para saber quem, além de mim, estava desconfortável.
A gente não consegue ver o Sol a noite porque a Terra está sempre girando, expliquei. A maquete ao lado da janela tornara-se de alguma utilidade, apesar da presença de Plutão arder em meus olhos. Na mão direita, sustentei a bola de isopor amarela, enquanto a bola azul, maior do que deveria ser, girava sobre si mesma na esquerda. Se eu tivesse um terceiro braço, poderia demonstrar o caminho dos feixes de luz. Dessa vez, não pude deixar de notar os movimentos de Hélio no canto da sala.
A tinta guache, ainda molhada, fluía para debaixo das minhas unhas quando a explicação foi interrompida: Minha mãe disse que o vô Tinoco virou uma estrelinha. Você já viu ele, tio Nilton? Os 300 hertz emitidos pela menina, agiram como meteoritos em meus tímpanos.
Tentando ganhar tempo, devolvi os objetos para mesa. A fricção de uma mão na outra me esverdeou. Nenhuma teoria, telescópio ou dose de whisky conseguiria me salvar. Não estudo esse tipo de estrela, minha pequena, mas sei que existem. O estômago de ateu traído expeliu bile na base da minha garganta. Ah, fez a neta de Tinoco, com os braços amarrados em frente ao peito e a boca sorrindo de cabeça para baixo. Libertei o primeiro botão da camisa.
Crianças, agora a última pergunta, temos mais gente para receber, disse a professora comprovando a Teoria da Relatividade. Antes de mim, o advogado discursou por 20 minutos, eu não usara 7. Um caminho de minhoca nunca me pareceu tão útil. Do meio da sala, o estrondo interrompeu meu raciocínio.
A massa da mochila pendurada no encosto, somada ao quadrado da força usada por ele ao se levantar, derrubou a cadeira.
Por que você dorme tanto de dia? Os olhos de Hélio eram duas nebulosas.
Porque trabalho à noite, porque estou com 53 anos e preciso descansar, porque sou um profissional renomado, mas você e sua mãe não conseguem ver isso e porque, principalmente porque, eu nunca quis ter filhos. As palavras caminharam ásperas até a ponta da minha língua. Por sorte, pensamentos são mais rápidos do que músculos: É que, de madrugada, é a melhor hora para ver estrelas, meu filho.
A professora ergueu a cadeira e, sussurrando alto, tentou preencher o vácuo: seu pai é muito inteligente, Hélio, você deveria se orgulhar. Os olhos do garoto disparavam tempestades solares em direção a mim. Naquele momento, como nunca antes, vislumbrei o que achava ser impossível observar: entre meu filho e eu repousava irrefreável, o maior Buraco Negro conhecido no Universo.