Escrever bem é um dom?


Carol Canabarro

Por mais agarrados a racionalidade, é difícil não acreditar que escrever bem seja uma aptidão inata quando temos Mary Shelley, Raquel de Queiroz, Carolina de Jesus e outros tantos que parecem reforçar a existência de seres agraciados para a literatura.

A comparação é quase instantânea: "Mary Shelly foi precursora da ficção científica aos 19 anos. Quando eu tinha essa idade, só pensava em tocar violão" ou ainda "Carolina de Jesus tinha um caderno e um lápis e, contra todas as estatísticas, marcou a literatura brasileira, enquanto eu, com toda a internet e tempo à disposição, não consigo cobrir meia página", e vem a conclusão: "elas devem ter algo que eu não tenho".

Você acerta a resposta, mas erra a pergunta.

Ases da literatura - ou em qualquer outra valência humana - tem algo diferente dos demais, mas isso pouco ou nada tem a ver com dádiva. Goethe, em Fausto, nos aponta um caminho: "O que herdaste de teus pais, adquire-o, para que o possua" (Primeira parte, versos 686,687).

O cotidiano, muito mais do que uma benção divina ou uma predisposição genética, é que determina quão virtuoso se é. Para ser dotado de escrita, é necessário investir tempo de papel na mão. Ler, escrever, aprender, desaprender, revisar, escrever. E escrever mais um pouco. É a prática constante que lustra o espelho. Sem persistir, Carolina não teria se tornado quem se tornou.

O que se faz com a vocação diz mais sobre a pessoa do que o talento propriamente dito. Nem toda Carla, mesmo com o dom latente, quer ser Madeira. Algumas preferem ser Perez e tudo bem. O essencial é ser-se, no volume que desejar.

Claro, não se pode negar, a depender do kit de sobrevivência que cada um recebe, desbravar a mata do talento literário pode ser mais ou menos truncado. Clarice Lispector não teve as mesmas dificuldades que Anne Frank. Mas aposte, ambas domaram demônios para deixar suas pegadas na literatura.

No ápice, a pergunta principal não é se temos o dom da escrita, mas quantos calos se está disposto a criar na ponta dos dedos.

Mais do que receber o chamado da escrita (herdado ou não), é preciso atendê-lo e, nos momentos em que a voz falhar, ter a tranquilidade de suspender a conversa por alguns instantes, respirar fundo e voltar a digitar.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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